Olhe o mapa com atenção e me diga: Se tivesse que escolher outro lugar para viver, você ia
preferir países que aparecem em tons verdes ou tons de rosa?
É provável que você tenha escolhido morar em locais mais
desenvolvidos como os Estados Unidos, a Europa, o Japão ou a Austrália, todos
em verde. Dificilmente sua escolha terá sido na América Latina, na África
Subsaariana ou no mundo islâmico, quase todos em rosa.
Os países em tons de verde no mapa são aqueles onde é
garantido o direito de a mulher decidir se mantêm ou não sua gravidez e isso
não é coincidência. Empoderar as mulheres para tomar essa decisão é o
maior instrumento de combate à miséria no mundo.
Recente decisão do Supremo Tribunal Federal reacendeu no
Brasil esse debate. Ele precisa ser feito e a pergunta central não é se as
mulheres devem abortar, mas se o Estado deve decidir isso por elas.
RELIGIÃO
Antes de qualquer coisa é necessário falar da
premissa que gera a discussão: O início da vida humana. Porque se a vida humana
começasse no instante da fecundação do espermatozoide no óvulo, não haveria
discussão. Interromper uma gravidez seria equivalente a um assassinato. Se você
acredita nisso, eu entendo perfeitamente sua indignação ao tratar do tema, mas
esta ideia é um princípio puramente dogmático, inventado quando nós não
sabíamos coisas que hoje nós sabemos.
Até a 12ª semana de gestação não há vestígio de sistema nervoso central no feto. Não há, portanto, nenhuma sensação, não há vida humana intrauterina. Isto não é uma opinião minha, isto é a conclusão de anos de estudos da embriologia humana.
O Estado só deve impor obrigações ou proibições baseadas em
argumentos racionais, que possam ser colocados para todas as pessoas, de toda fé (ou de fé nenhuma). Não é o fato de um dogma ser aceito pela maioria que deve
legitimar sua imposição aos demais.
Se amanhã a maioria da população for formada por Testemunhas
de Jeová, seria legítimo que se fizesse uma lei proibindo nós outros, que não
profetizamos essa fé, de realizarmos transfusão de sangue nos nossos corpos?
Eles devem ter o direito de praticar seus princípios religiosos. Se alguém desta religião chegar acidentado num hospital e a única maneira de salvá-lo envolver transfusão de sangue, ele pode se recusar a fazer o procedimento, mas não pode impor a mesma regra aos demais.
O mesmo valeria
para uma maioria de adventistas que tentasse nos proibir de fazer determinadas
atividades entre o pôr do sol de sexta-feira e o pôr do sol de sábado, ou uma
maioria de judeus tentando nos proibir de comer bacon.
Assim, uma mulher que creia haver um ser humano num
zigoto e decida manter a gravidez mesmo sem ter condições social,
econômica, psicológica, familiar favoráveis deve ter sua opção respeitada.
Impor a todas por lei é que não deve ser regra.
HIPOCRISIA
Muitas vezes o moralismo leva o debate a questionar a vida
sexual da mulher (e só da mulher). “Quem não quer engravidar é só não sair
dando por aí”, dizem.
Tal postura é tão irracional quanto a de quem, ao ver outro
motorista fazer uma ultrapassagem imprudente na estrada, acelera ao invés de
reduzir a velocidade ou ir para o acostamento. “Se não quisesse bater, que não
ultrapassasse”.
Assim como no exemplo da estrada, a negação do direito de escolha feminino sobre seu ciclo reprodutivo também é um problema que vem bater de frente conosco.
EXEMPLO LOCAL
Ficou famoso o caso de um sujeito que realizava abortos
clandestinos no fundo da sua farmácia em Chapadinha.
Suas clientes não eram filhas da pequena burguesia, essas
podem recorrer a meios mais seguros, nas capitais. Vão àquela clínica que todo
mundo sabe, mas ninguém comenta e, mesmo sofrendo o abalo psicológico, passam
pela experiência com um grau razoável de segurança.
Enquanto isso, jovens filhas de camponeses chegavam da zona rural, sem o devido conhecimento, sem nenhum acompanhamento psicológico. Só elas e seu desespero. Essas se submetem a métodos medievais para interromper a gravidez arriscando ficarem com sequelas ou até ir a óbito. Manter a atual legislação é manter essa realidade.
NÚMEROS
Um em cada cinco partos realizados no SUS é de meninas de até 19 anos! Não está preocupado com a vida humana quem acredita que seu dogma religioso e moral deve ser imposto a essas meninas e elas não devem ter o direito decidir manter ou não a gravidez, mesmo que não tenham condição de criar a criança, mesmo que não haja uma estrutura familiar, mesmo que isso acarrete mais problemas sociais.
A maternidade deve surgir de uma decisão consciente de ser mãe, e não como uma obrigação imposta pelo Estado ou pelos costumes alheios.
A interrupção da gravidez no seu início não tem diferença
ética com o uso de pílulas de emergência (“do dia seguinte”). Muitas vezes, a
gravidez pode ser interrompida com comprimidos que fazem o corpo da mulher
expeli-la como uma menstruação, mas ainda há quem julgue que 15% das mulheres
brasileiras de 18 a 39 anos deveriam ser presas por já terem feito isso.
Veja bem, uma em cada sete mulheres adultas. Olhe ao redor,
você conhece alguém que já recorreu a isso, provavelmente alguém de quem você
goste muito, talvez ame. A dura decisão que ela tomou faz mesmo ela merecer
cadeia ou este tema precisa ser tratado sob outra ótica.
CONCLUSÃO
Este é um problema social e de saúde pública. O Brasil pode
zerar o número de abortos pós-12ª semana e zerar o número de mortes decorrentes
de abortos clandestinos.
O caminho passa por quebrar o tabu, tirar esse assunto da
clandestinidade, garantir o direito à informação, expandir a distribuição de
métodos contraceptivos e respeitar o direito de a mulher decidir até a 12ª
semana.
A decisão do STF é um pequeno passo para um país que ainda
precisa aprender que o que eu concordo não precisa ser obrigatório e o que
discordo não precisa ser proibido.
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